terça-feira, maio 22, 2007

Como pode uma vida caber numa pasta?




Na fita que a D.Graça me escreveu, recordou as bonecas que espalhávamos no fundo da sala, junto da mesa grande, com tampo de madeira envernizada e com os pés de ferro, encarnados. Na mesma sala as paredes penduravam as vogais e todas as letras do alfabeto, e no meio da tarde havia sempre alguém que pedia para "dar o leite". No largo, no "intervalo grande", tínhamos quarenta minutos para jogar à passadeira. Caíram os primeiros dentes e fizeram-se os primeiros amigos.
Ainda com saia de pregas e meias pelos joelhos passámos juntos para o ciclo, onde o medo foi superado pelo facto de ficarmos todos juntos na mesma turma. Durante muitos intervalos ainda jogámos ao berlinde, perto da sala de música e conservámos o mesmo grupo, na mesma turma.
As primeiras matinés no Lagar ainda foram vividas com receio e inocência. Depois vieram as fugas das quartas-feiras à tarde, de biciclete e depois de scooter.
As primeiras camisolas a cheirar a tabaco foram disfarçadas, com histórias mal contadas, e num instante tínhamos chegado ao nono ano. Veio a primeira grande mudança. Era chegada a vez de cada um seguir um caminho diferente, e assim foi. E assim ficámos grandes, conquistámos os parapeitos das janelas do bar e contra eles atirávamos , todas as manhãs, as mochilas pesadas.
Uns foram-se afastando e aproximaram-se amigos novos.
Fomos assim montando o futuro, os projectos, fazendo contas à vida que ameaçava passar rápido.
Entre viagens à Praia da Rocha, hemiciclos, AE´s...havia sempre tempo para os estudos, para as aulas sábias do nosso querido Platão, do divertido Bin Laden, para as aulas de todos, que no secundário nos marcaram de forma tão especial. Entre dicionários de latim e os tapetes de judo do pavilhão, estudou-se para os temíveis exames nacionais, sob o calor intenso de um verão que anunciava uma mudança quente.
Depois, fomos os três a Santarém e revejo agora a tinta a sair da caneta, que entre a mão nervosa fez a candidatura ao Ensino Superior.
Mais uma grande mudança. Cada vez mais afastados uns dos outros.
Cheguei à faculdade e senti-me uma criança. Apalpei terreno, fiz o reconhecimento do local, deixei que as segundas impressões passassem a terceiras. Tive certezas. Fiz amigos para a vida, como achava que não fazia mais, como alguns que já tinha, mas que compreendem melhor que ninguém o que agora sinto!
Agora, é a maior das mudanças... e a ansiedade é maior do que nunca. A única certeza que temos é a de que tudo, de hoje para a frente, é incerto. Tanto, que dói.
Não nos deixam salvar o mundo nem vigiar a verdade, pedem-nos para montar as palavras para moldes já feitos. Nem nos dão tempo para pensar no que já não somos. Não há tempo como havia antes.

Ainda me lembro do cheiro da bata da D. Graça e do sorriso reconfortante da "Tia da Escola", quando eu caía no recreio.
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5 comentários:

Anónimo disse...

Pior do que não haver tempo é parecer que o temos que inventar, dia após dia...
Uma vida nunca caberá numa pasta e. por isso, é importante que a guardes para teres sempre na memória que a tua vida é muito mais do que essa pasta, do que essas palavras, do que os sentimentos...É também acções, gestos, carinho, olhares, encontros, amizades, festas, atitudes não pensadas, atitudes racionais, amor, paixão, angústia, lágrimas...e tudo isto não cabe numa pasta.
Também se me perguntassem dizia logo que não queria que coubesse..sabe bem melhor assim, mesmo quando o caminho que fazemos se desvia um pouco da rota...
ADORO-TE!

Anónimo disse...

E lembraste ainda das muitas janelas que fomos fechar a sua casa, e das maças que lá íamos buscar? E das latas de Sagres que bebíamos no banco de trás do autocarro em cada visita de estudo? E das vendas e revendas de presentes do Dia dos Namorados?E da unica falta injustificada que demos por termos ficado a ver tv na AE em vez de irmos à aula de Latim? E das "discotecas, discotocas, discogaitas" do nosso querido Prof. PP? E daquele Sr do Entrocamento que usava calças de linho branco que voavam ao vento? Parabens pelo retrato mais fiel da minha infancia e adolescencia!
Bjinho

Anónimo disse...

Não pode miúda!
Mas o que é certo é que as memórias ficam agarradinhas a ela como uma lapa. A capa é a prova que temos da nossa história, das fases da nossa vida...é um depósito de memórias!

Revi muito a minha vida no teu texto. É bom partilhar contigo desta cumplicidade!
Beijo miúda

Deb disse...

Miúdas de metáforas?!
Então...Claro que pode!
Um texto tão pequeno cabia apenas numa fita, nem precisava da pasta inteira. Bastava a TUA fita.
E nela vemos como em tão simples palavras descreves o que vai na alma de milhares de pessoas que sentem os mesmos medos a cada ano por esta altura.
Entre nós, grupo restrito, a sensação é ainda mais empática. Passámos por tudo juntas. O pavor assola... então nao vês que até me ando a esconder para não me aperceber de tudo isto?
Mas vai Chefe, vai como tu sempre foste capaz de ir... que nós vamos atrás de ti!
OBRIGADA!!!

In Lak'ech (sou um outro tu) disse...

Jamais a tua vida poderá caber numa pasta..
O testumunho que passas apenas com a tua simples presença exala para o mundo um explendor de sabedoria e beleza que jamais poderia caber numa pasta.
És grande. Muito grande. Grande no que sentes, grande no que pensas, grande no que és e sei que serás sempre grande no que viverás.
O céu é o limite. Não pares de crescer.
E quanto ao tempo.. caga pra esse parvo! Ele não merece a nossa atenção =)
Aproveita cada minuto como tu tão bem sabes e estarás a bater o tempo aos pontos..
Beijo
Adoro-te minha GRANDE amiga ;)